Tonny Ferreira | Cultura nos define como cidadão
Moro em Lauro há 50 anos, nasci e fui criado aqui
Coisa boa é poder conversar com amigos, sobretudo os das antigas, aqueles que gente demora de ver, mas quando nos encontramos, rola aquela vibração positiva. A última vez que encontrei o diretor e ator teatral Tanhinho, foi na encenação da Paixão de Cristo de Lauro de Freitas, na Praça da Matriz, em abril de 2022. Ele estava na plateia nos prestigiando.
Recordo que foi um momento delicado e de muita emoção. Estávamos todos realizando o espetáculo sem o nosso eterno diretor e saudoso Duzinho Nery, que idealizou e dirigiu a peça por mais de 20 anos. Confesso que a partir de agora, todas as vezes que estivermos na produção da Paixão de Cristo este sentimento estará conosco.
A missão de manter o legado da peça ficou com a gente, sobretudo com o nosso irmão caçula Alan Nery, que atua desde a primeira edição e agora carrega a missão de diretor do espetáculo. Eu sempre fiz parte dos bastidores ao lado da equipe de produção composta por grandes amigos, amigas e a nossa comunidade cultural.
No final da apresentação, o ator e diretor teatral Taninho veio falar conosco com aquele abraço recheado de lágrimas de ambos os lados. Lágrimas de saudades do nosso Duzinho e de emoção pelo espetáculo que foi apresentado repleto deste sentimento por todos os atores, bailarinos, cantores e equipe de produção técnica.
Lembro de ter dito: “meu irmão preciso entrevistá-lo, estou produzindo uma série literária com pessoas que deram e dão norte ao teatro aqui em Lauro e você não pode ficar de fora”. Dias depois enviei as perguntas via WhatsApp. Meses se passaram, confesso que já tinha perdido a esperança. Mas numa certa segunda-feira de dezembro de 2022, às cinco horas na manhã, recebo um presente (um áudio): “irmão desculpe a demora, segue as respostas da nossa entrevista”.
Taninho é um amigo da velha guarda. Nos conhecemos nas atividades culturais produzidas pela Pastoral da Juventude, ele à frente de grupos de jovens do bairro de Itinga e eu, do centro. Na época éramos uma só paróquia. Mas no começo dos anos de 1990 foi dividida e a partir daí nos grandes festivais realizados pela Forania 9, da Arquidiocese de São Salvador, passamos a ser “concorrentes” no bom sentido. Pois antes da divisão paroquial erámos todos do mesmo time, em especial, nas produções artísticas para os festivais organizados pela Arquidiocese.
A Pastoral da Juventude foi a nossa escola de arte e fé. E os grupos de jovens laboratório de convivência, partilha, amadurecimento, senso crítico, irmandade e movimentos culturais que até hoje dão frutos em nossas vidas.
O que me deixa triste é quando o poder público não dá o merecido valor aos trabalhadores da cultura local
Com vocês Tonny Ferreira, ator, diretor, produtor cultural, professor e roteirista que iniciou sua carreira aqui na sua terra natal, nossa querida Lauro de Freitas, participando ativamente da cena cultural. Dirigiu durante 12 anos a Paixão de Cristo de Itinga e para o nosso orgulho, foi o primeiro morador de Lauro a entrar na Escola de Teatro da UFBA, onde cursou Licenciatura e Direção Teatral.
Foi um dos fundadores do Conselho Municipal de Cultura de Lauro de Freitas, onde contribuiu fortemente no fomento da cultura local, destacando-se no setor de movimentos teatrais. Fez parte da fundação da UNIALF - União dos Artistas de Lauro de Freitas, projetando o nome do município dentro e fora do país. Nos anos 2000, iniciou sua pesquisa em Máscaras, participando como ator e assistente de direção no Grupo Prá Nós a Máscara com direção de Isa Trigo. Atualmente está à frente da direção do espetáculo Ubu Rei da Cia Persona de Teatro.
Taninho como é conhecido entre familiares e amigos revela seu nome de batismo: “meu nome é Antônio Ferreira de Souza Filho, tenho 50 anos e sou ator desde 1987. Fiz Licenciatura em Arte Cênicas e concluir o Bacharelado em Direção Teatral pela Universidade Federal da Bahia. Também sou professor de teatro concursado pelo município de Salvador. Moro em Lauro há 50 anos, nasci e fui criado aqui”.
Ipitanguense da gema
Sou descendente da família Ferreira, neto de “Seu” Antônio Pedro, popularmente conhecido por ser um dos primeiros moradores de Itinga, pois era um dos três herdeiros das terras que hoje compreende o bairro. Casado com Percilia Costa de Souza, primeira alfabetizadora de Itinga, tiveram oito filhos. Sou o neto primogênito do primeiro filho chamado Antônio Ferreira de Souza, cujo nome eu herdei.
Atualmente moro há 13 anos no bairro de Vida Nova, mas meus parentes paternos são moradores de Itinga, já os maternos estão espalhados entre os bairros de Areia Branca, Jambeiro e Portão. Por isso me considero um legítimo Ipitanguense (alusivo a Santo Amaro de Ipitanga, antigo nome de Lauro de Freitas).
Como nasci em 1972, vi de perto o
crescimento desordenado dessa cidade; acompanhei meu avô vendendo terras e
negociando com Senhor Gerino (ex-prefeito de Lauro de 1980 a 1985) loteamentos
que viria a se tornar o bairro de Itinga. O nome Itinga é uma palavra de origem
indígena e significa “água branca ou rio branco”; ITI – água ou rio, NGA –
branca (o nome era usado pelos índios para denominar o rio). Tenho orgulho de
ser morador desse bairro e dessa cidade que amo tanto.
A arte bateu mais forte
Ela entrou em minha vida desde
pequeno. Na minha tenra infância, lembro-me de quando alguém me perguntava a
fatídica pergunta “O que você vai ser quando crescer?” e eu sempre respondia
artista, mas todos achavam engraçado. Eu gostava muito de desenhar e pedi para
minha mãe, um caderno de desenho que foi por muito tempo o meu companheiro;
para onde eu ia eu levava e mostrava para as pessoas e dizia: quando eu crescer
vou ser artista.
Fui uma criança muito comunicativa,
gostava de dançar e cantar. Lembro que ganhei aos oito anos um concurso de
música no bairro, fiquei em segundo lugar. Tive minha primeira experiência com
o teatro no Colégio Governador Lomanto Júnior, em Itapuã. Ali naquele
auditório, toda terça e quinta eu ia no turno oposto para fazer teatro. Lembro
que eu tinha 12 anos e de lá para cá, isso me definiu; comecei a assistir as
novelas de um jeito diferente, procurando aprender e os filmes da sessão da
tarde, que eram sempre os mesmos naquela época, tornaram-se para mim uma
fonte de inspiração.
Meus primos e primas começaram a passaram a ser meu laboratório de criações de peças que apresentávamos para nossa família, sempre em datas comemorativas. Aos 14 anos entrei para o grupo de jovens onde ampliei minha percepção nos Festivais de Criatividade, promovido pela Pastoral da Juventude. Ali foi a minha grande escola e onde pude colocar em prática inúmeras produções.
Acredito que atualmente a Igreja Católica precisa voltar a se aproximar dessa juventude embora não vejo nada que aponte para essa direção o que é lamentável
Paixão de Cristo de Itinga
Sempre fui curioso, inventivo e, isso, fez com que me incomodasse a procissão tradicional da Via Sacra, no período da Páscoa. Acontecia que, em cada parada da Via Sacra, uma comunidade era responsável para encenar uma das Estações. [A via Sacra é um piedoso exercício de prática de oração que se faz durante a quaresma, às sextas- feiras, recordando a Paixão de Cristo, meditando o sofrimento de Jesus a partir do tribunal de Pilatos até o monte Calvário. Este percurso é formado por 14 estações].
As Estações resultavam no final com cerca de 10 Jesus, cada um com uma cruz, além de cinco Marias e mais 50 apóstolos. Esteticamente era ruim e não tinha unidade naquilo! Nessa época eu fui chamado para fazer parte da assessoria da Pastoral da Juventude e comecei a fazer um movimento de propor a união dos grupos de jovens com objetivo de fazermos algo mais artístico, inspirado na Paixão de Cristo de Pernambuco, que eu assistia na televisão. Isso deu tão certo que a Via Sacra acabou saindo do aspecto itinerário, para um lugar fixo no bairro de Itinga, na Praça do Caranguejo.
Lembro que no 5º ano de existência do projeto da Via Sacra de Itinga, vieram jornalistas do jornal A Tarde, Tribuna da Bahia e outros veículos cujos nomes não me recordo; bem como a TV Bahia, TV Aratu e outras emissoras de televisão. Devo dizer que isso tudo foi fruto da assessoria luxuosa na época do saudoso jornalista Hamilton Viera, que já era morador do Parque Santa Rita (Itinga) e não entendia porque aquele acontecimento que parava o bairro e arrastava multidões não era noticiado pela mídia. Esse fato levou a visibilidade desse projeto e o crescimento da encenação.
Pastoral da Juventude
Costumo dizer que fui forjado pela Teologia da Libertação, a Igreja Católica me deu régua e compasso. Recordar esse momento de minha vida é lembrar de sorrisos, de reuniões e amizades que fiz nesse período e trago até hoje, fico feliz em fazer parte desse momento em que esse templo cristão deu protagonismo a juventude e que se voltou para os oprimidos e mais desfavorecidos.
Isso fez com que os jovens de
nossa época pudessem ter acesso a encontros semanais de formação de Teologia,
mas também de política social que serviram como laboratório e espaços de
reflexões importantes como: o processo de formação na fé, a metodologia de
trabalhos com jovens, a cultura, as políticas públicas de juventude,
planejamento da ação pastoral, as missões e tantas outras discussões.
Sinto que no final dos anos 90 e início de 2000 com a chamada "Nova Era", todo esse movimento foi declinando e acabou sufocado com o advento de outros movimentos como a Renovação Carismática Católica (RCC).
Vi que isso se opôs a tudo que vivemos,
fato é que a Teologia da Libertação foi aos poucos perdendo espaço ao ponto de
hoje não vermos jovens sendo protagonistas na Igreja. Acredito que atualmente a
Igreja Católica precisa voltar a se aproximar dessa juventude embora não vejo nada que
aponte para essa direção o que é lamentável.
Segundo Augusto Boal, "cultura
é a reflexão do ser humano sobre si mesmo e sobre o mundo, e sobre o que faz
neste mundo. É o feito e o fazer, é o como fazer o que se faz. É a criação de
uma realidade não prevista nos desígnios da natureza. Um real objetivo, como a
construção de casas e pontes, feitas de pedras; um real subjetivo, como a moral
feita de valores”.
A cultura possibilita e engendra a
arte, que é o seu estado supremo e soberano. Concordo com ele nesta definição
sobre cultura. Tive o prazer de ouvir do próprio Boal em uma palestra que
ministrou na 2ª Bienal no Rio de Janeiro, em 2001. Para mim a cultura é algo
vivo que nos define como cidadão no mundo.
Riqueza cultural de Lauro
Lauro de Freitas é um celeiro cultural e defendo que em Itinga, bairro que tem mais de 70 mil habitantes, ou seja, mais da metade da população do município, a arte pulsa em cada praça e em cada rua.
O que me deixa feliz é saber que Lauro é uma referência nacional
em relação às manifestações de matriz africana. No município estão registrados
cerca de 400 terreiros de candomblé é também uma das maiores concentrações de
praticantes da capoeira.
Somos uma das cidades com maior
número de habitantes afrodescendentes. O que me deixa triste é quando o poder
público não dá o merecido valor aos trabalhadores da cultura local. É um erro
contratar artistas de fora por valores exorbitantes e relegar aos artistas
locais cachês nada decentes.
Principais projetos
Concepção e execução - “O Sonho de Sofia” (2015-2016), selecionado no Festival Nacional de Teatro Infantil de Feira de Santana, Bahia – FENATISF.
Concepção e execução - “Em Busca do
Tesouro” (2011-2013) – Selecionado no Festival Nacional de Teatro Infantil de
Feira de Santana, Bahia – FENATISF.
Direção - “Cinco Contra Um”,
(2010-2015)
Concepção e direção “Uma Farsa
Áspera” - Melhor cenário e Espetáculo revelação - FIT 2007 (Festival Nacional
Ipitanga de Teatro), Lauro de Freitas, Bahia.
Concepção e direção da Paixão de
Cristo de Itinga, Lauro de Freitas, Bahia - (1995 a 2010).
Espetáculos como ator
“Do Lado de Dentro do Canto da
Sereia” - Direção Isa Trigo, (2006-2007).
“O Menino Que Era Rei e Não Sabia” -
Direção Carlos Pretovicht, (2004-2006).
“Celebração a Marubá” - Direção
Vânia Laranjeira, (2000-2004).
Com a arte a educação se constrói, elas estão completamente interligadas
Arte e educação
Sim, sou defensor da arte sendo oferecido desde a infância para que possamos ter cidadãos mais conscientes do seu papel na sociedade. “A arte existe porque a vida não basta”, Ferreira Gullar. Essa frase define perfeitamente a arte; ela existe porque as pessoas têm a necessidade de se expressarem e de saberem como o outro se sente. Somos seres relacionáveis, por isso, a arte se tornou uma grande ferramenta de comunicação para expor sentimentos, pensamentos, anseios e preocupações.
Com a
arte a educação se constrói, elas estão completamente interligadas. A arte diz
muito sobre a pessoa que a produz, por isso ela é dinâmica, viva e única.
Através da arte vemos os períodos históricos e o comportamento humano. Sua
compreensão é subjetiva, cada pessoa vai entender de uma forma diferente. Por isso viva a educação, viva a arte, viva a
vida.
Alguma novidade?
Quem me conhece sabe que sou inquieto, artisticamente falando costumo fazer mesmo sem grana. Atualmente estou dirigindo um espetáculo com a “Cia Persona de Teatro” com estreia prevista no primeiro semestre de 2023. Tenho me dedicado também a meu primeiro livro que vem contribuir para literatura infantil.
Tenho também um projeto
particular que é um grande presente para minha querida cidade de Lauro de
Freitas, mas esse segue em segredo no tempo certo revelarei, só posso adiantar
que se trata de um roteiro de um documentário sobre a nossa cidade.
Agradecimentos
Agradeço a Deus por está completando 35 anos de carreira com esperança de poder continuar fazendo o que me faz feliz e realizado. Agradeço muito a minha família que sempre me apoiou em tudo que eu faço. Sou grato aos meus antigos que me precederam e me formaram como artista e para não ser injusto, não vou citar nomes aqui. Agradeço aos meus ex-alunos e alunas que se tornaram meus pupilos e pupilas; foi por eles que fui buscar conhecimento fora daqui para ensiná-los.
Parafraseando a letra de uma música: "fui aprender a ler para ensinar meus camaradas". Sigo sempre em busca de aprimorar minha arte e ano passado terminei um curso de roteirista onde tive a oportunidade de escrever três curtas que estão disponíveis nas plataformas digitais. Já participei com eles de um festival em Portugal e estou inscrito em festivais de cinema aqui no Brasil.
Sou grato pela arte e dela ter me possibilitado muitos
encontros, além de ter me dado muitos amigos ao longo dessa jornada. Por fim,
Evoé Baco!!
Viva a Arte sempre!!
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Márcio Wesley | DRT/BA 5469
Jornalista com MBA em Comunicação
e Semiótica na linguagem artística | Licenciatura em Artes Visuais
Obrigado pela atenção!! Pelo carinho de sempre e por ter me entrevistado. Sou grato a vc e sua família querida.
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