DONA NICOTA DE PORTÃO: DO ACARAJÉ AO BUMBA-MEU-BOI
Márcio Wesley
Liguei para o telefone fixo de dona Nicota e marcamos uma entrevista na casa dela em Portão, foi no ano de 2008. Começamos a conversar ela estava retraída e desconfiada, mas cinco minutos depois, cantando e dançando na sala de casa, mostrando uma pequena parte do seu repertório que aprendeu quando ainda era criança, tudo passado de forma oral. Infelizmente até hoje a memória e as tradições da cultura popular de Lauro de Freitas não são preservadas devidamente, naquela época minha preocupação era preservar através do jornalismo, entrevistando mestres e mestras da cultura popular com a finalidade de imortalizar seus legados. Um povo sem passado e memória, é um povo sem futuro...
Dona Nicota, 70 anos (na ocasião que fiz a entrevista), é uma das figuras mais atuantes da comunidade de Portão. Sempre disposta para o trabalho, sustentou seus filhos com a arte do acarajé. A baiana nasceu numa humilde casa de farinha, em Vilas de Abrantes e, com oito anos, foi morar definitivamente em Portão. Ela descreve que o bairro antigamente era um vilarejo coberto de mato, algumas trilhas e pouquíssimas casas. E mesmo com o advento da modernidade, Nicota não abre mão de sua moradia, residindo na rua Queira Deus, uma das principais da localidade. Dos 16 filhos, apenas oito estão vivos, mas os "xodós" da vovó são os seus dez netos e os quatro bisnetos (na época).
Foi batizada como Albanis Nunes
dos Santos, mas ninguém a conhece por esse nome. Além de ser urna excelente
'baiana de acarajé', ela também é considerada uma autêntica mestra da cultura
popular, desenvolvendo até hoje o samba-de-roda e o desfile do bumba-meu-boi em
sua comunidade. Ela conta que aprendeu todas as coreografias e cantigas quando
ainda era criança. O interessante é ouvir de perto as coreografias e músicas
cantadas por ela. Sem dúvida um momento fascinante e de pura beleza cultural.
O Boi Realce é o nome do famoso
bumba-meu-boi de Nicota, um dos mais velhos do município, que desfila
anualmente pelas ruas de Portão nos dias 5 e 6 de janeiro, comemorando a
tradicional Festa de Reis. A festança é de primeira, com roupas coloridas,
cantorias, samba-de-roda, fogos e visitando as casas dos moradores.
Nicota conta detalhes de como
acontece o desfile do seu Boi Realce: "nosso boi tem vários personagens.
Tem a 'Seri-vera', mulher corajosa que sai para cortar lenhas na mata sem medo
de ser atacada pelo boi; tem a 'Maria Padeira', uma vendedora de pães que com
um balaio na cabeça sai vendendo seus produtos e dançando; tem a 'Maria Tereza',
que adora pedir tudo emprestado de outras pessoas; tem a 'borboleta Angélica',
que é paquerada pelo gafanhoto, mas como o bicho é muito feio, ela não quer
nada com ele. Tem também a 'Pastora', a 'Mineira' e outros tantos personagens,
todos apresentados com enredos de samba-de-roda e coreografias
especificas", explica.
O que representa a cultura na vida da senhora?
Dona Nicota ressalta que os jovens não
se interessam pela cultura popular, se restringindo aos mais velhos todo o
trabalho de preservação. "A juventude de hoje não sabe o que é sambar.
Falo do verdadeiro samba no pé, sambar não é usar shortinho curto. As pessoas
daqui de Portão só querem saber de festas com trios elétricos e blocos.
Infelizmente a mocidade não se interessa em manter viva as antigas
tradições", desabafa.
Com trinta anos Nicota se separou
do marido e ficou com os oito filhos para criar, mas isso não foi problema para
ela, que saia para trabalhar e deixava as crianças com amigos e familiares, que
cuidavam deles enquanto ela corria atrás do pão de cada dia.
"Quando me separei, no
começo dos anos 60, fui trabalhar em Salvador, com minha cunhada. Lavávamos as
roupas de Dr. Valdir Pires. Nos finais de semana, vendíamos acarajé na orla.
Foi quando aprendi a fazer o quitute, surgindo a ideia de vender na praia de
Buraquinho. Lembro que foi uma época difícil, levávamos o tabuleiro e as panelas
na cabeça, de Portão até à praia".
Ao falar da separação, ela
agradece a Deus pelo ex-marido ter ido embora. "Ele era muito ciumento e
não deixava eu conversar com ninguém, eu era uma mulher fechada e tinha
vergonha de falar com os outros. Depois que ele partiu, minha vida mudou,
comecei a me comunicar, brincar, cantar, sorrir e vender meu acarajé em
Buraquinho, quando ainda nem existiam barracas de praia. Na verdade, as
barracas eram feitas com paus e lençóis, que serviam de cobertura. Criei meus
filhos com pirão de caranguejo”, risos.
A mestra da cultura popular arriscou vender acarajés no CAB (Centro Administrativo da Bahia), próximo à secretária de
Industria e Comércio. Passei onze anos por lá, mas os prejuízos estavam tirando
meu sossego, muita gente comprando fiado sem querer pagar, isso me irritou e
resolvi ir embora. Sou muito determinada, e quando me chateio, procuro resolver
logo a situação".
Assim que saiu do CAB, a baiana foi
convidada para arrumar seu tabuleiro no Clube da Caixa Económica, na Estrada do
Coco, onde passou 26 anos, mas para surpresa de todos, ela resolveu sair de lá
no mês passado. "O motivo que me levou a sair do clube foi a falta de
clientela. Cada dia menos gente frequentando, e menos ainda comprando acarajés,
chegando ao ponto de eu ter prejuízo, sendo essa a principal causa de minha
saída", lamenta.
Ao descrever Portão como era
antigamente, ela fecha os olhos e pensa um pouco, tentando lembrar os bons
momentos: "tenho saudades do Rio Joanes, que era farto de peixes e
mariscos era uma fonte de alimentação para o nosso povo, os meninos eram fortes
e não ficavam doentes. Hoje fico com olhos cheios d'agua quando passo pela
ponte e vejo o velho Joanes morto e apodrecido".
A dona do boi Realce é a líder do
Grupo da Terceira Idade do Centro Social Urbano de Portão. Ela coordena e das aulas
de artesanato, croché, cultura popular, confecções de roupas (figurinos) e
cuida das apresentações de samba-de-roda e do bumba-meu-boi. "Nosso grupo
é enorme, estamos sempre trabalhando e produzindo festas, sejam elas juninas,
natalinas, Dia das Mães, dos Pais, das Crianças e tantas outras. Adoramos uma
festança", conta com risos de satisfação.
A riqueza cultural de dona Nicota nos faz encher a alma de esperança e de profunda alegria. O sonho de todo artista popular é que um dia as pessoas reconheçam seus valores e suas raízes. Que compreendam e respeitem o passado, pois só assim poderá construir um futuro melhor. Dona Nicota faleceu no dia 6 de março de 2013, aos 75 anos deixando um legado para o munícipio.
Márcio Wesley | DRT/BA 5469
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