A Mulher da Trouxa em Santo Amaro de Ipitanga
Na sossegada Santo Amaro de Ipitanga, onde o labor da agricultura e da pesca sustentava a vida simples da maioria dos moradores nativos, foi mudada com a chegada de novos habitantes no início da década de 1940, impulsionada pela construção da Base Aérea, que trouxe consigo uma movimentação nunca vista no vilarejo.
A área militar foi concebida com auxílio das forças armadas dos Estados Unidos, durante a Segunda
Guerra Mundial, com objetivo de conter os temíveis U-boats (submarinos) nazistas
que estavam afundando navios brasileiros. E a vila de Santo Amaro de Ipitanga foi escolhida como ponto estratégico na defesa do litoral nordestino.
Mesmo em meio à essa grande efervescência com novos moradores americanos e de pessoas de diversas partes do Brasil e da Bahia que vieram auxiliar nas obras e nas instalações da base, a vila manteve sua essência simples e com as personalidades místicas vivendo no seu cotidiano.
O circo
A praça que sempre foi palco de encontros, viu-se encantada com a chegada de um circo mambembe, que sabia dessa agitação em Santo Amaro de Ipitanga, uma oportunidade de renda para manter as atividades circenses e ampliar seu espetáculo com um público diversificado.
A trupe era composta de artistas que desenhavam uma espécie de teatro comunitário cheio de improvisos e com as participações de malabaristas, palhaços, dançarinas e um virtuoso mágico, todos juntos neste elenco multicultural e itinerante que cativava os corações de todos.
Na proximidade da praça, Joãozinho morava com sua família numa casa humilde de dois cômodos com seis irmãos, pais e a avó materna. O menino nutria um sonho: frequentar o circo e ver de perto toda magia das artes.
Na primeira noite do modesto espetáculo ele se aventurou a escapar de
casa, ansioso por vivenciar o deslumbramento das apresentações. O circo, embora acanhado
aos olhos dos adultos, revelou-se grandioso na alma do menino de 10 anos,
encantando com a diversidade cultural.
A
narrativa da noite mágica de Joãozinho sobrevive nas memórias dos mais antigos
da vila, onde o garoto, envolto por performances que tiravam seu fôlego, se viu
maravilhado. Seus olhos brilhavam a cada número, enquanto as luzes de uma velha gambiarra desenhavam
na escuridão um espetáculo que o transportava para um mundo de sonhos.
De volta à realidade, a irmã mais velha, atenta ao sumiço de Joãozinho, alertou a mãe sobre sua ausência. Enquanto a família aguardava o retorno do garoto, ele ajudava na desmontagem da produção do circo, durante a primeira noite de apresentação. Ele queria estar próximo dos artistas, mas esqueceu de tudo, até mesmo da hora de ir para casa, quando as luzes da praça se apagaram.
Existiam poucos postes de
madeira espalhados pelas principais ruas, na ausência de luz elétrica, a
comunidade dependia de um velho gerador doado pelos militares da Base, que era
desligado pontualmente às 22 horas.
Na escuridão das ruas, Joãozinho disfarçava o medo enquanto caminhava para sua casa, mas um calafrio percorreu sua espinha, trazendo consigo o terror de estar sendo seguido. Então, uma voz doce de mulher sussurrou atrás dele, insistindo em levá-lo para casa.
Mulher da
Trouxa
A
lembrança da Mulher da Trouxa, figura misteriosa que percorria a vila, entrou na sua mente. A lenda
contava sobre uma mulher abandonada pelo marido e que sozinha lutava para sustentar seus filhos lavando roupas de ganho à beira do rio Ipitanga. Sua morte prematura a
deixou inconformada e sua alma começou perambular pelas madrugadas, buscando orientar
crianças perdidas ou assustadas.
O garoto e a comunidade não tinham ciência da lenda real, na cabeça de todos a Mulher da Trouxa raptava crianças para fazer sabão. Temendo a tal mulher que o seguia implorando para levá-lo em casa, o menino correu desesperadamente. Ao chegar na sua residência, surpreendeu-se com a porta trancada.
A mãe, consciente da desobediência, resistiu em abrir, com o intuito de dar-lhe uma lição valiosa. Mas o soluço e o pedido de socorro do menino revelaram a presença de algo assustador. Entretanto, o medo foi dissipado quando a Mulher da Trouxa se revelou não como uma ameaça, mas como alguém que queira ajudá-lo.
A mãe, ao abrir a porta, deparou-se com o filho sentado na calçada
com um pacote de balas na mão, sorrindo para uma mulher de semblante amigável e com uma trouxa na
cabeça que foi desaparecendo vagarosamente como fumaça até sumir.
Essa noite, além das lições de desobediência e amor pelo circo que marcaram Joãozinho, trouxe à tona a história de uma alma inconformada pela partida prematura e a luta incessante por ajudar crianças.
Nas tramas da vida,
aprendemos que, mesmo nas sombras, a compreensão e o afeto podem dissipar os
medos mais profundos, transformando lendas tenebrosas em narrativas de redenção
e pertencimento com a história de nossas vidas e cidades.
Autor:
"Mulher da Trouxa em Santo Amaro de Ipitanga"
Márcio Wesley
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