Na década de 1980 eu era criança e Nino pertencia a uma geração mais adiantada, da moçada mais jovem e descolada, influenciada pelo punk e a liberdade de expressão. Vivíamos com a crosta do Regime Militar no governo. Morávamos na mesma rua no centro de Lauro, nossos pais são amigos e eu sigo na irmandade com seus irmãos Alisson e Sandro, ambos amantes da música, instrumentistas e compositores de mão cheia.
Acredito que de certa forma, beberam da fonte do irmão mais velho, o nosso saudoso Alberto Lima, Nino, carinhosamente chamado pelos mais chegados. Entre a galera do rock, "Nino Tora".
Sandro, Alisson e Nino
O nosso querido Nino nos deixou em 2017, mas sua história em nossa cidade tem um significado enorme, sobretudo no que se refere ao universo musical, "rock".
Além de ser amante do Rock and Roll ele era um grande aficionado por futebol, amava! Sua posição em campo era no gol. Recordo dele no "Campo da Beira do Rio" (atual Condomínio Ipitanga), assumindo com austereza o papel de juiz em babas e campeonatos organizados pela comunidade. A varanda de sua casa no período das férias de verão era tomada por campeonato de botão (futebol de mesa) organizado por ele, uma pessoa extremamente focada em tudo que fazia.
Outra boa lembrança que tenho é da Brasília amarela de seu pai levando todo o time (juvenil liderado por Nino) dentro do carro para jogar, achava aquilo o máximo. Se eu não estiver enganado, o uniforme era da seleção brasileira.
Tora também colecionava gibis, cheguei a ver milhares de exemplares no seu quarto, (um leitor nato), centenas de LP's e fitas cassetes. No início dos anos 2000 mudou a vida da água para o vinho, literalmente, tornou-se um fervoroso evangélico. Inclusive vi pregando na rua com muito entusiasmo. Como eu disse, era uma pessoa que fazia tudo com intensidade.
Certa feita foi me visitar na sede do Jornal Expressão (lá na nossa rua), eu já estava inserido no jornalismo e publicando entrevistas de personalidades de nossa cidade. Chegou com seu Alberto (seu pai) e me apresentou seu livro, acho que era sobre futebol, não me recordo bem. Mas seu pai estava muito orgulhoso com esse trabalho literário, conversamos e publicamos algo sobre o livro.
Recordo que na ocasião ele não queria ser chamado de "Nino Tora", acredito que por conta da sua caminhada religiosa. Chegou a me corrigir, "por favor Márcio, me chame de Alberto". Bem sério e formal, parecendo um gerente de banco ou advogado.
Confesso que fiquei surpreso, tentei chamá-lo de Alberto, mas de vez em quando esquecia e o Nino soava natural durante a nossa conversa. Teve um hora que ele me disse, "Márcio, pode me chamar de Nino", notou que eu não estava conseguindo assimilar o Alberto, risos.
Alguns anos depois fomos eu, Nino e Alisson para o Palco do Rock (durante o carnaval de Salvador), assistir o show da Plebe Rude. Ele já estava mais tranquilo com essa questão religiosa, ainda assim, fiquei cheio de receio e não sabia se chamava de Alberto ou Nino?
Mas quando chegamos no local do show muitos reconheceram o velho roqueiro e de longe bradavam "Toraaaa" e seguiam para cumprimentá-lo. Com largo sorriso e um forte aperto de mãos Tora retribuía o reconhecimento. Curtimos o show bebemos algumas cervejas e notei a presença marcante do calejado e ao mesmo tempo contemporâneo roqueiro antenado em tudo.
Alisson Lima segue a dinastia
Há alguns meses recebi um telefonema de Alisson informando que estava preparando um EP em homenagem a Nino. Prontamente disse que o blog estava de portas abertas e que seria uma honra poder publicar o projeto em nosso portal cultural.
O processo foi demorado da minha parte, neste período eu também tive um irmão que completou seu ciclo. O luto me fez perder um pouco a vontade de escrever sobre cultura. Falar de Nino me faz recordar Duzinho, duas grandes figuras de nossa Lauro de Freitas. Não é fácil, mas precisamos manter a chama acessa e o legado dos nossos sempre vivo. Viva a Tora, viva a Duzinho, viva a nossa gente!
Nino interagia com todos bastava gostar de rock que tudo fluía
Segue o texto reflexivo de Alisson Lima, falando do projeto que produziu em homenagem a seu irmão mais velho.
Nino Tora...
Tora é um projeto antifascista criado
para lembrar do meu irmão que partiu no ano de 2017. Não é uma homenagem, ele
daria uma sonora gargalhada e me detonaria com ironia fina se eu usasse esse
termo. Não é uma banda, ele gostava de projetos, essa coisa de juntar as pessoas
específicas num momento determinado para fazer um som e em seguida cada um
seguir seu rumo.
Eu convidei alguns de seus amigos,
seria impossível convidar a todos. Respeitando a forma como ele via o
underground, nós optamos por conceber uma sonoridade absolutamente suja e
despojada, claramente anticomercial. A capa, diagramação, arte interna do
álbum físico, bateria, baixo, guitarra, letras, vozes e a atitude,
tudo isso veio da participação de pessoas que escolheram, de alguma forma,
“viver um cotidiano de luta e barulho”!
“Viver um cotidiano de luta e
barulho”, li isso escondido numa das cartas que ele recebia de todos os cantos
do mundo no final dos anos 80. Eu devia ter 12 anos e nunca esqueci, busquei
logo entender que o som sempre está associado à contestação dos valores de uma
sociedade fascista escrota que tem sua fundamentação no machismo, no racismo e
na desigualdade social.
Sigo fazendo som aqui e ali e meu irmão segue
sendo uma grande referência mesmo que ele tenha me dito lá no início “faça o
teu caminho”! Eu estou fazendo!
Nino, Nino Tora ou apenas Tora,
esses eram alguns jeitos de se referir ao meu irmão mais velho. Alberto era seu
nome. Enfim, esse cara e sua importância em minha vida são a razão dessas
músicas existirem exatamente do jeito que elas são, diretas e críticas.
"Anti-herói"
Mas
antes de falar delas eu quero falar um pouco mais dele. Eu via Nino sair e
chegar em casa com amigos e discos de bandas de rock, com o tempo percebi que
aquele tipo de música e atitude eram algo fundamental na personalidade dele e
iriam me influenciar também mais tarde. Um desses amigos era Wilson com quem
Tora fundaria a Trucidator, por volta de 1989, sendo pioneiros, por aqui, numa
sonoridade extrema conhecida por "noisecore".
Esses sons que eu criei em 2021, quatro
anos após sua partida, são a expressão de um sentimento que está em mim e nos
amigos dele que participaram dessa gravação. Tora nos deixou uma saudade imensa
e a vontade de resistir às agruras de nosso tempo.
No primeiro som, chamado
Anti-herói, algumas frases nos dizem um pouco sobre esse ser humano complexo.
Bem, eu sei que meu irmão gostava mais do Surfista Prateado e seus
questionamentos filosóficos que dos outros fantasiados simplórios. Ele não
gostava, simplesmente, dos heróis e nem eu nunca o vi assim, por isso a letra
sobre as contradições de um ser humano, demasiadamente humano.
Nino era performático quando cantava, um grande pesquisador. Roqueiro raiz e uma referência no rock baiano
No segundo, N.I.N.O., algumas
referências à Trucidator. Nesse som busquei trazer um pouco de sua visão
crítica a respeito dessa sociedade medíocre que se baseia na imagem para criar
seus modelos morais hipócritas.
A obsessão pelo lucro é a máquina de destruir
vidas
O terceiro som, Nino Tora, é uma
citação a uma de suas bandas preferidas, conhecida por ter feito uma das
menores músicas da história em seu primeiro disco clássico. Quem conhece a
referência se questiona sobre a razão de sofrer.
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