Campo de aviação dos franceses: Lauro de Freitas ajudou a conectar o Brasil ao mundo
Por Márcio Wesley
Na varanda da antiga casa, no coração de Lauro de Freitas - Bahia, ele costumava sentar-se todas as manhãs. Dali, observava em silêncio a cidade que viu nascer, crescer e se transformar.
Chamava-se Cândido Viterbo de Santa Rosa, ou simplesmente “Seu Candinho”, figura querida e respeitada, um contador de histórias como poucos.
Nascido em 1913, na então Santo Amaro de Ipitanga (hoje Lauro de Freitas), foi testemunha ocular de momentos decisivos da história local, inclusive de um capítulo que ligou esta terra ao mundo: a construção de um campo de aviação postal por franceses, nos anos 1920.
A entrevista a seguir foi realizada antes de seu falecimento, em 2011. É um registro precioso da memória viva de um homem que guardava em si fragmentos do passado que moldaram a identidade de Lauro de Freitas.
Com lucidez admirável aos 95 anos (na ocasião), Seu Candinho lembrou cada detalhe do passado. Entre suas memórias mais vívidas estava a presença dos franceses que chegaram à região para instalar um campo de pouso e decolagem de aviões.
Foi meu pai, Inocêncio Batista dos Santos, quem construiu o primeiro chalé no Campo de Aviação, nos anos 20. Tudo era mato. A fazenda Portela, de Miguel Pinto, foi parcialmente vendida aos franceses. Eles montaram hangares, chalés e pista de pouso
"Era ali que os aviões pousavam para distribuir e receber correspondências. Os franceses faziam o serviço de correios com pequenos aviões, entre cidades do Brasil e para fora do país também”, contou.
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| Seu Candinho em uma entrevista que fiz publicada na Revista Vilas Magazine |
A operação era comandada pela Compagnie Générale Aéropostale, criada pelo visionário francês Pierre Georges Latécoère. A empresa ficou conhecida mundialmente por estabelecer rotas aéreas postais ligando a Europa à América do Sul. Mais tarde, a Aéropostale foi incorporada à Air France, que manteve operações na região até meados dos anos 1930.
O Campo de Aviação de Santo Amaro de Ipitanga foi um dos primeiros pontos de apoio aéreo internacional no Nordeste brasileiro. Era parte de uma rota estratégica que ligava Toulouse (França) a Dakar (Senegal) e, de lá, ao Brasil, passando por Natal, Recife, Salvador (Santo Amaro de Ipitanga) e seguindo para Rio de Janeiro e Buenos Aires.
Eles transportavam cartas, malotes e encomendas
“Os franceses pousavam aqui com os aviões para abastecer e seguir viagem. Traziam cartas, malotes, encomendas. Era um vai e vem de gente diferente, falavam outra língua, vinham uniformizados. Aquilo tudo era novidade para nós, meninos do mato. A cidade parava para ver os aviões descendo”, descreveu com saudade.
O campo funcionava na antiga Fazenda Portela, em uma área que, décadas mais tarde, abrigaria a Base Aérea de Salvador. Foi ali que a aviação internacional encontrou abrigo na Bahia, antes da existência do atual Aeroporto. Em 1955, quando a infraestrutura aérea foi ampliada e modernizada, o aeroporto passou a se chamar Aeroporto Dois de Julho, nome que permaneceu até 1998.
O menino que vendia quiabos e via aviões pousarem
Filho de lavradores, Seu Candinho começou a trabalhar aos 13 anos.
“A roça era nosso sustento. Quando meu pai morreu, eu e minha mãe tocamos uma plantação de quiabo no Caji. Acordava cedinho, botava o burrinho na frente e ia até a Sete Portas, em Salvador, vender a produção. Ia a pé. Era a vida de um menino homem.”
A infância dura, marcada pela luta diária pela sobrevivência, não apagou as lembranças dos aviões pousando e de um tempo em que a cidade respirava novidade.
Era uma emoção ver aquelas máquinas descendo do céu. O progresso começou a chegar com eles
Base Aérea
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, na década de 1940, a antiga pista dos franceses foi transformada em estrutura militar.
“Os americanos e militares brasileiros chegaram para erguer a Base Aérea de Salvador. Muita gente da cidade trabalhou na obra. Era dinheiro circulando e movimentação na comunidade. Mas também foi quando passamos a viver sob ordens militares”, alertou.
Tragédias e resistência
Nem só de progresso viveu a cidade. Entre as recordações de Seu Candinho estavam a enchente de 1935, quando a barragem do Ipitanga rompeu e deixou a cidade isolada, e os surtos de paludismo (malária) entre 1933 e 1943, que ceifaram vidas e marcaram a história local.
Ficamos ilhados, sem mantimentos. Vi muita gente morrer. A cidade sofreu, mas resistiu
Rio Ipitanga e as festas
“O Rio Ipitanga era limpo, a gente bebia daquela água, pescava robalo, camarão, pitu. Era o orgulho da cidade. Hoje tá poluído, esquecido”, lamentou seu Candinho.
Entre as lembranças alegres, estavam as festas de São Miguel, celebradas em 29 de setembro com missa, samba-de-roda, comida e dança. “Todo final de semana tinha festa e a cidade respirava alegria”.
Guardião da memória
Seu Candinho faleceu em 2011, aos 98 anos. Mas nos deixou saudades, filhos, netos, bisnetos e uma herança imaterial de valor inestimável: suas memórias.
Ele sonhava que a Travessa Abelardo Andreia, onde viveu, levasse seu nome. Era o desejo de um homem que amou sua terra e a viu participar silenciosamente da história da aviação mundial.
A pista onde pousaram aviões franceses nos anos 1920 deu origem a um dos aeroportos mais importantes do Nordeste. Mas, antes dos hangares modernos e das pistas asfaltadas, havia barro, mato e olhos atentos de um menino chamado Candinho, que cresceu testemunhando a história passar pelo céu de Santo Amaro de Ipitanga.
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Márcio Wesley | DRT/BA 5469 | Jornalista | MBA em comunicação | Licenciado em Artes | Instagram @marciowesleycnery
Campo de aviação dos franceses: Lauro de Freitas ajudou a conectar o Brasil ao mundo
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outubro 13, 2025
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