SEU CANDINHO CONTANDO NOSSA HISTÓRIA
Por Márcio
Wesley
Todos os dias pela manhã o
aposentado senta-se no sofá da antiga casa e, pela janela, observa atentamente
a movimentação, que já não é a mesma de há trinta anos. A agitação e o
corre-corre tomaram conta de tudo. Ainda na confortável poltrona, o veterano
morador se delicia conversando com amigos, comentando sobre assuntos os mais
diversos, incluindo política, cultura, histórias e estórias da localidade. Esse
é o assunto que ele mais gosta: relembrar fatos do passado. Seu Candinho sabe
como ninguém contar boas histórias.
Nosso personagem nasceu em 1913,
na antiga Santo Amaro de Ipitanga e viu de perto todo o progresso chegar. O
simpático e sorridente senhor, que tem nove filhos e mais de 40 netos e
bisnetos, não teve vida fácil. Ganhar o 'pão de cada dia' sempre foi uma tarefa
árdua. "Comecei a trabalhar com 13 anos. Tinha pouca idade, mas muito
juízo. Foi uma pena meu pai ter me tirado da escola tão cedo para eu trabalhar,
mas hoje compreendo tudo. Meu pai sozinho para sustentar uma família, não era
tão simples assim". Seu Candinho trabalhou na roça e em três pedreiras.
Aos 37 anos conseguiu um emprego de carregador de malas no aeroporto, onde
ficou até se aposentar.
É verdade que seu nome foi
escolhido num almanaque?
Pois é, meus pais queriam um nome
chique para mim. Então resolveram escolher num almanaque de nomes e me
balizaram de Cândido Viterbo de Santa Rosa. Esse nome não tem nada haver com a
árvore genealógica da família, pois o sobre nome de meu pai era Batista dos
Santos e de minha mãe, Conceição. Isso criou uma confusão danada, tanto que
nenhum dos meus filhos levou o sobrenome Santa Rosa. Mas confesso que estou
arrependido de não ter dado esse sobrenome para eles.
Fale um pouco sobre seus pais e
sua infância?
O nome de meu pai era Inocêncio
Batista dos Santos e minha mãe Sátyira Maria da Conceição. Eles eram
trabalhadores rurais e davam um duro danado para sustentar a família. Meu pai,
além de trabalhar na roca, era carpinteiro de profissão. Foi ele quem construiu
o primeiro chalé do Campo de Aviação, nos anos 20, onde é hoje a Base Aérea, na
antiga Fazenda Portela, que pertencia a Miguel Pinto.
Miguel vendeu uma parte da
fazenda para os franceses, que construíram um campo de aviação e alguns chalés
e hangares para guardar as correspondências e os aviões. Os franceses faziam o
trabalho de correios com pequenos aviões, entre uma cidade e outra, e até para
fora do Brasil, transportando cartas, malotes e encomendas. O campo de aviação
da Latécoère Aeropostale e Air France
em Santo Amaro de Ipitanga, depois Campo de Aviação Santo Amaro de Ipitanga,
foi iniciativa do francês Pierre Geoges
Latécoère, após a primeira Guerra Mundial. Em 1955 o aeroporto ganhou o
nome de Dois de Julho.
Meu pai faleceu no dia 14 de
novembro de 1928. Com 15 anos de idade eu era o homem da família. Tive que
trabalhar com minha mãe para ajudar no sustento de meus irmãos. Antes de meu
pai falecer ele tinha uma roça de quiabo arrendada. Ele utilizava a terra e
pagava uma espécie de aluguel. Foi essa roça, lá no Caji, que nos salvou da
fome quando meu pai morreu. Com as vendas dos quiabos compramos um burrinho e
mantivemos a nossa família.
Quando era criança eu não brincava e nem jogava
pedras em passarinhos. Era acordar cedinho para trabalhar. Eu saía com o
burrinho carregado de quiabos até a Sete Portas [em Salvador]. Fornecíamos
quiabos para os feirantes, que por sua vez comercializavam em suas barracas.
Era uma jornada longa. Quando o burrinho estava cheio, eu ia andando daqui até
lá cortando a areia da praia, matos e trilhas. Era uma viagem boa, mas
cansativa.
Como era a cidade no passado?
Havia poucas casas e muito mato. O transporte eram os pés ou o lombo dos animais. Para chegarmos ao Centro de Salvador era um Deus nos acuda. Saíamos daqui, passávamos por Itapoan, Boca do Rio, Cabula e Baixa de Quintas até São Joaquim, quase sempre andando. Quando alguém morria, reuníamos os homens e saíamos a pé até o Taboão, em Salvador, para comprar o caixão. Trazíamos correndo na cabeça, era uma coisa de doido. [Seu Manuelzinho foi quem comercializou os primeiros caixões na cidade no final dos anos 40]. Quando alguém ficava doente nós levávamos de rede amarrada num pedaço de pau e dois homens carregavam até Salvador. As coisas não eram fáceis. Os jovens de hoje reclamam de tudo. O progresso chegou aqui junto com a Segunda Guerra Mundial [1939 a 1945]. Nesse período os militares apareceram e construíram a Base Aérea de Salvador, na área do antigo campo de aviação dos franceses. Nesse período muita gente da cidade trabalhou na construção da base e ganhou dinheiro. Foi também nesse período que passamos a viver sob as ordens dos militares. Eles mandavam por aqui. O pessoal da cidade era acanhado e permitia tudo. A rua da Cesta do Povo, no Centro, foi apelidada pelos militares de 'Guaximba’ Lá vivam as mulheres de fora, muitas faziam vida.
Os antigos dizem que o município passou por muitas
tragédias. O senhor presenciou algumas delas?
Foi entre os anos de 1933 e 1943. Vi muita gente
morrer de paludismo [malária]. Outra tragédia foi a enchente que ocorreu em
maio de 1935: a barragem do Ipitanga soltou muita água e inundou parte da
cidade e destruiu quase todos os acessos. Ficamos ilhados e sem mantimentos.
Como era o
Rio Ipitanga?
Era uma maravilha. Bebíamos água, tomávamos banho e
pescávamos robalo, camarão, pitu, trairá, acará e piabas. Esse rio era limpo e
dava de comer para muita gente. Hoje em dia não passa de um riachinho poluído e
fedorento.
Como era Santo Amaro de Ipitanga?
Aqui no Centro não havia nada. Somente dois
armazéns, o cartório, a igreja e o cemitério. Quase todo mundo era roceiro.
Posto médico e luz só depois da emancipação, nos anos 60. Tenho saudade das
festas arrojadas de São Miguel, no dia 29 de setembro, que comemorávamos com
missa, muita música, comida e dança. Aqui havia festa quase todo final de
semana. O povo adorava um samba-de-roda, bebidínhas e muita comida. Era bom
demais!
Mas o passado é o passado, temos que viver o
presente. Hoje em dia a molecada está muito avançada. A gente não pode mais
sair de casa com medo de ser assaltado. No meu tempo não havia isso, íamos para
a cidade com dinheiro na mão e não havia perigo. Há anos não vou ao banco
receber minha aposentadoria, fiquei com medo. (*Seu Candinho faleceu em 2011).
Seu Candinho deixou saudade, adorava falar sobre a sua terra natal
(V. Magazine, edição117, 2008).
Márcio Wesley | DRT/BA 5469
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